Uma reflexão contra ditadura da utilidade.
Para onde a sua curiosidade está te levando? Uma reflexão contra ditadura da utilidade.
Estamos condicionados a produzir, ser útil.
Nessa rotina, em que executamos tudo que nos demandam, não sobra tempo — nem energia — para passatempos, novas descobertas, livre conhecimento.
Entretanto, nossa espontânea curiosidade, é capaz de abrir a mente e despertar para novos caminhos. Um passatempo, um lazer com os amigos ou até uma atividade paralela ao seu trabalho — como o voluntariado, por exemplo —, que lhe traga satisfação. Sem relação com o peso da produtividade.
E esse processo, despretensioso, pode nos levar por caminhos inimagináveis.
Quer um exemplo? Recentemente visitei a Fundação José Saramago, em Lisboa, e conheci a trajetória do escritor. Você sabe como ele se tornou um grande intelectual, autor de mais de 40 livros, reconhecido internacionalmente e vencedor de um Nobel de Literatura?
Eu, confesso, não sabia.
Um currículo sem graduação, mestrado ou doutorado. Mas, com um Nobel de Literatura
Apesar de ter sido excelente aluno, por questões financeiras, Saramago parou os estudos ainda no ensino médio e migrou para a escola profissionalizante onde fez o curso de serralheiro mecânico. Profissão que exerceu por alguns anos, até migrar para o funcionalismo público. Nesse curso, porém, havia uma disciplina de literatura que desperta seu interesse pela leitura.
O gosto pela leitura e a falta de condições para adquirir seus próprios livros, o fizeram frequentar a biblioteca pública de sua cidade, todos os dias à noite.
Por pura curiosidade e interesse por conhecimentos diversos.
“E foi aí, sem ajudas nem conselhos, apenas guiado pela curiosidade e pela vontade de aprender, que o meu gosto pela leitura se desenvolveu e apurou” - José Saramago.
De forma autodidata, num período sem internet, Saramago formou-se intelectualmente através das leituras. Anos depois começa a escrever e publicar seus primeiros livros.
Sem dúvidas um exemplo sobre até onde a curiosidade pode nos levar.
Ao longo de sua trajetória, que não foi linear, o escritor chega a se afastar da literatura por quase 20 anos. Mas, mantém seus estudos por meio da literatura e pesquisas bibliográficas. Em sua fundação, inclusive, encontramos sua carteirinha da biblioteca pública e inúmeras fichas onde fazia anotações referente às suas pesquisas.
A partir dos conhecimentos acumulados, visão de mundo, consciência social e política tornou-se um dos principais pensadores e escritores da sua época. Vencedor de prêmios importantíssimos como o Nobel de Literatura e o Prêmio Camões de Literatura.
Criou seu próprio estilo de escrita e foi um dos responsáveis pelo reconhecimento internacional da prosa em língua portuguesa. Suas obras adaptadas para o cinema conquistaram o grande público, gerando reflexões relevantes sobre a condição social e os interesses do ser humano.
<importante>
Longe de mim, transformar esse texto em um discurso meritocrático. Principalmente porque não acredito nisso. É claro que, se Saramago trabalhava durante o dia e ia para a biblioteca à noite, dedicando-se inteiramente ao prazer das leituras, havia alguém cuidando de sua alimentação, roupa, casa, etc. Mas, esses aspectos ficam pra outro texto.
O enfoque que proponho aqui é: quando Saramago decide frequentar a biblioteca para ler, o que lhe move é o desejo de aprender, a curiosidade sobre o que havia naqueles livros.
Não estava frequentando nenhum estudo formal que o obrigasse a fazer isso.
Não planejava ser escritor. Muito menos almejava a relevância que conquistou.
Também não iria aplicar o que aprendia nos livros em sua profissão.
E esse é o ponto: o quanto vincular nosso valor à produtividade constante, limita nossos aprendizados. Como se devêssemos dedicar nosso (precioso) tempo e energia somente no que terá uma aplicação prática, de preferência em um trabalho remunerado. Sem válvulas de escape, sem espaço para o prazer, deixando morrer todo lampejo de interesse livre.
Destrinchei bastante esse tema no texto: Somente o Desnecessário (recomendo a leitura), mas destaco aqui esse trecho:
“Esse caminho de consumo e produção nos distancia da oportunidade de aprendermos apenas para satisfazer uma desinteressada curiosidade ou para nos entretermos com algo diferente. Ter um passatempo, um tema de interesse livre pode nos ajudar a cuidar da mente, do corpo, reduzir o estresse e a tensão da rotina (…). Dessa forma, pessoas que não compreendem tais interesses, livres de utilidade, questionam e até criticam a “perda de tempo” com coisas que não terão retorno. Contaminando e desestimulando o prazer pelo conhecimento livre, que pode inclusive surpreender com a descoberta de habilidades que antes não conhecíamos”.
Já pensou se Saramago achasse perda de tempo ir à biblioteca todas as noites, depois do trabalho?
Se não dedicasse nenhum tempo a leitura, pesquisa, estudos. Talvez tivesse se resignado ao destino de trabalhador, sem estudos e perspectivas.
Não teria despertado sua vontade de escrever, e aí toda sua grandiosa carreira, simplesmente não existiria.
Por isso, hoje, deixo a reflexão: para onde a sua curiosidade está te levando?
Quais universos, ou bolhas, você está inserido?
Quantas delas não têm relação com sua atividade profissional?
O desenvolvimento amplo e diversificado de habilidades, nos torna não só profissionais, mas principalmente, pessoas mais interessantes. E no fim, para além de cargo, somos uma pessoa que constrói e carrega o repertório que escolhermos.
Faz sentido pra ti? Vamos trocar opiniões aqui nos comentários!
Obrigada por ler, se você gostou compartilhe com seus amigos.
Sigo tentando liberar um texto novo todo mês. Se quiser, envie sugestões de pautas para os próximos meses.
Comments